quarta-feira, 7 de maio de 2008

Bonecos de Santo Aleixo

Teatro Popular
A actividade artística dos bonecos articulados, de engonços, manipulados por pessoas que os movimentam e lhes emprestam as vozes para servirem de actores na representação de Peças de Teatro, é uma prática tradicional de tempos remotos.
Boneco articulado ou Boneco de engonços (articulados), como é evidente não se aplica aos Bonecos de luva.
Donde vieram e quando chegaram até nós os bonecos articulados?
As legiões de Júlio César, imperador romano, quando chegaram a Península Ibérica traziam ao seu serviço titereiros acompanhantes.
Certamente que os nobres peninsulares lhes seguiram a moda.
Este será porventura o testemunho mais antigo.
Justamente na linha desta influência assinala-se a actividade artística do Teatro de Bonecos, tiveram a aura a partir dos reinados dos Filipes.
O Teatro era divertimento e também difusor de ideias e questões com a palavra dita em voz alta. Logo se ergueram barreiras para impor vigilâncias, condições e normas.
A Igreja aparece, aliás como sempre, com autoridade plena e refreia os ímpetos desses divertimentos, indicando quais os preceitos e preconceitos religiosos.
Face a esta posição da Igreja que o Teatro dos Bonecos atingiu grande popularidade. Fácil de deslocação aceitavam-se de bom grado as representações bonecreiras, onde, em paródia se podia criticar. Cantar e representar, o que não seria possível com figuras humanas.
Peças de Gil Vicente, Lope de Veja, Calderón e outros autores da mesma linha levaram o Teatro de Bonecos a uma época de ouro.
Depois dos salões – Teatro Litúrgico e das Cortes – criou-se uma grande influência pública para outros locais de fácil acesso do público em geral – pátios. Casas de lavoura casões, etc -.
O Teatro de Bonecos regista-se por escrito no reinado de D. João V com grande preponderância em Lisboa.
Chamou-se de Bairro Alto a primitiva Casa dos Bonecos onde se representaram várias peças sendo de salientar as Óperas do Judeu e que, parece, durou de 1733 até ao terramoto em 1755.
De sucesso em sucesso o Teatro dos Bonecos foi durante muito tempo o único divertimento a que o povo concorria.
Assim tradição do Teatro dos Bonecos chegou até nós.
Nesta técnica de manipulação de bonecos articulados temos no Alentejo os Bonecos de Santo Aleixo.
Santo Aleixo é uma freguesia de Monforte que dista cerca de 50 Kms de Estremoz que é o centro bonecreiro de barristas.
Será que Estremoz através dos seus artistas teve alguma influência como difusor dos bonecos ?
Ao certo ninguém sabe as origens do aparecimento dos Bonecos de Santo Aleixo.
Sabemos que por tradição passou de pais para filhos sendo que muitas vezes estava numa só família a apresentação e que andavam de terra em terra durante meses.
O mais antigo bonecreiro que há memória foi o velho Promocena. natural de Santo Aleixo, como o povo lhe chamava, distorcendo o verdadeiro nome – Nepomuneno.
2
Conta-se que era um homem muito respeitável, muito entendido nos Evangelhos e na História Sagrada.
Versejador e que com muita facilidade glosava motes, característica muito importante para desenvolver esta actividade onde havia a necessidade do improviso.
Num dia, uma altercação fatal provocou a morte dum homem. Com o Promocena metido nisso desapareceu de Santo Aleixo, fugindo para outros lugares fixando-se depois em São Romão – Vila Viçosa -.
É que se a justiça o procurasse estava mais perto da raia de Espanha. Mas veio o esquecimento.
Para seu sustento criou o modo de vida dos Bonecos que, baptizados com a origem do Promocena assim se fixaram até hoje.
Uma bisneta do Promocena casou-se com um homem que tocava guitarra e que aprendendo todo o reportório formou uma companhia.
Este ao envelhecer vendeu todos os bonecos a António Talhinhas que tomou o papel de Mestre Salas e que com o seu núcleo familiar foram durante muitos anos detentores de todo o espólio até que foram adquiridos pelo CENDREV – Évora que, e ainda bem mantém em actividade um grupo especialmente constituído para o efeito.
Neste momento, para manter esta tradição, para além do CENDREV, há um outro grupo em S. Bento do Cortiço no concelho de Estremoz, em que encontramos representações com aquele cariz que sempre caracterizou os Bonecos de santo ASleixo. É dirigido pela D. Ermelinda Dias e os bonecos foram feitos pelo senhor João Morgado que como elemento do grupo toda guitarra.
Como são feitos os bonecos?
Os bustos entalham-se em madeira e o resto do corpo em trapo e algum esgalho de madeira, no esqueleto e nos pés para fazerem sapateado. São decorados sem relevos, em formas primárias e pintados toscamente nos olhos, nos cabelos, na barba e na boca. Os fatos são feitos de trapos coloridos. Um arame de grossura variável com tamanho de cerca de 3 palmos, preso à cabeça, serve ao manipulador para evoluir na cena.
O palco é composto por um estrado pequeno, sobre estacas, resguardado atrás dum rectângulo formado por cortinas de ramagem, mais ou menos de 3X4 metros. A boca do proscénio fica na parte central. Entre a cena e o público há uma dupla cortina de fios, dispostos verticalmente, que mantêm uma ilusão dos arames, confundidos com os arames. Os cenários são pintados sobre cartão forte e têm uma quadratura de meio metro. As cortinas de ramagem escondem os manipuladores que actuam sobre duas banquetas laterais para lhes dar altura na função. O número de intervenientes é de 4 mais 2 ajudantes que fazem coro mais um guitarrista. As representações têm lugar em celeiros, casões ou barracões amplos, desocupados durante o Inverno, período de mais actividade dos bonecreiros.
O espectáculo começa com uma apitadela. Tudo escuro e começa a música de contradança na guitarra. É chamado o Baile dos Anjinhos. Segue-se um texto dramático, tirado da Bíblia que versa a Criação do Mundo. Tem analogias com o auto de Adão e Eva muito representado no norte do país. Mas se o tema é idêntico o desenrolar é bastante diferente. Aqui o jogo cénico é feito em diálogo com dois apresentadores – Mestre Salas e o Padre Chanca.
O desempenho do Mestre Salas será a dum antigo Mestre-cerimónias. Personagem jovial, esperto, bom cantador, rapioqueiro, fadistinha e com muita bazófia. Vence todas as dificuldades e trás sempre uma bengalinha na mão. Tem uma prima com quem canta, namora e também baila. Sobre o Padre Chanca – Chantre da Sé – apresenta-se de batina, cabeção, mitra e um guizo na mão esquerda. De cabeça disforme, serve de bombo de
3
festa. É um clérigo devasso mas simplório, caindo em todas as esparrelas. Em casa tem uma ama que dá pelo nome de comadre e “serve para vários serviços”. Quando há “balhinho” desce à cena e dança com ela, provocando chalaças da assistência.
Depois da apresentação do Auto da Criação do Mundo o espectáculo continua com entremezes ou quadros, a que dão o nome de “balhinhos”.
Os assistentes trazem bancos ou cadeiras de casa. Há também quem fique de pé.
O Baile dos Anjos
Quatro pares de anjos descem do firmamento rodopiando ao som duma contradança tocada na guitarra.
O anjo Custódio à frente faz as piruetas de primeira figura. A cena vai escurecendo. Da direita entra um circulo iluminado com figura de Sol, que vai percorrendo o palco até à esquerda. A cena está toda em luz.
Um coro entoa:
Já lá vem nascendo o Sol
Que a todo o mundo dá luz
Reverdecem as flores
Para sempre Ámen Jesus
Depois do Sol desaparecer surge a Lua. A iluminação do palco é difusa. O círculo que figura a Lua entra também pela direita, enquanto o coro segue dentro da mesma música:
Já lá vem nascendo a Lua
Que Deus fez omnipotente
Mostra uma luz fecunda
Caminha para Ocidente.
No final do coro á “á parte” entre bastidores dizem - Que dias tão pequenos -.
Comentários e disputas das atribuições do Sol e da Lua em dois bonecos alusivos
Os dois
Senhores, por obediência
Lhes pedimos atenção sua
Para ouvirem uma conferência
Que teve o Sol com a Lua.
Sol
Eu sou o Sol brilhante
Que a todo o mundo dou luz
Deu-me este poder Jesus
Para ser o astro mais constante
Sou dos astros mais dominante e em tudo dominarei
Eu nunca descansarei
Pela minha natureza
Sempre móvel me virei
4
Lua
Eu sou aquela luzerna
Que a todo o mundo dá claridade
Fez-me Deus esta vontade
Só em mim Cristo governa
Deu-me Deus o ser eterna
Para crescer e minguar
Para de noite iluminar
Nas campinas os pastores
Passando muitos rigores
Sempre pouca luz irei dando
Mas sempre me estou lembrando
De os teus lindos resplendores.
Sol
Com os meus autos e rigores
Eu te digo para que creias
Tu Lua só alumeias
De noite aos malfeitores
Com os meus lindos resplendores aqui ficas autorizada
Se estás de estrelas coroada
Podes seguir o teu giro
Eu de aqui não me retiro
Sem te ver martirizada.
Lua
Assim como Deus me premeia
Eu me vejo comprometida
Em quatro quartos dividida
Lua Nova e Lua Cheia
Todo o astro me rodeia
Assim rezam as profecias
Assim afirma Zacarias
Que já há muito é morto
Nós temos perto o porto
De esta vida ao Messias
Sol
Que alegria é essa
Tal bem nos veio trazer
Lua
Deu-nos Deus a graça
E o Senhor
O ventre puro de Maria
Ambos
5
Ó que gosto ! Ó que empenho !
Ó que oferta a adoração
Louvamos Jesus Cristo
Deus de toda a redenção
Entra o Padre Chanca e diz
Deus de toda a redenção
Nos dê paz e eloquência
Para desempenhar com ciência
Toda a nossa obrigação
É de muita ponderação
O real povo aplaudir
O nosso gesto é divertir
Tudo com muito asseio
Ora viva para que sirva quem veio
Ao nosso adivertimento assistir.
Coro – Ora viva para que viva!
Entre Mestre Salas muito jovial e diz
Adeus senhores e senhoras
Estão bons e passam bem?
Eu estou bom e teso como um rapaz da pândega
(virando-se para o Padre)
Adeus senhor Padre Chanca! Está bom e passa bem?
Chanca
Adeus Mestre Salas. Estás bom e tens saúde?
Há tanto tempo que não nos víamos (abraçam-se)
Olha: (declama com gravidade)
O Sol e a Lua é espelhente
E devemos crer nessa fé
A nossa obrigação é
Em sermos a Deus temente
Amá-lo devidamente
Muitas vezes a contínuo
Quando Deus era menino
Esta máquina formou
Tudo no mundo criou
Pelo seu poder divino
Resposta no mesmo tom
Mestre Salas
Pelo seu poder divino
Tanto que Adão e Eva formou
Por isso cá nos deixou
Em cada coisa seu destino
Deus também foi um menino
6
Deus também teve pobreza
Devemos crer com certeza
Assim reza a escritura
Deus passou muita amargura
P´ra dar ao mundo clareza
Chanca (à parte)
Saber é saber (abraçam-se)
Meus senhores está chegada a hora
De começar no nosso divertimento
Para os senhores que estão cá dentro
E mais alguns que estão lá foram
Nós vamos já sem demora
Dar principio à nossa função
De dentro do nosso coração
Confiando em nossa almas
Ganharemos as vossas palmas
Se nós merecermos atenção
Mestre Salas (continuando a representação)
Se nós merecermos atenção
Palmas desejamos ouvir
Para o povo aplaudir
Estamos na ocasião
Com a nossa habilitação
Nós vamos experimentar
Cada um peça o que desejar
E seja da vossa pendência
Nós estamos à obediência
De quem nos veio visitar.
(apito) baixa o pano
Auto da Criação do Mundo
Cenário de arvoredo. Baixa a imagem de Deus e ouve-se a sua voz salmodiada.
Deus
Faça-se o homem à minha imagem e semelhança
Levanta-te Adão. (ergue-se a figura de Adão em nudez completa)
Olha Adão. Aqui ficas senhor deste paraíso terreal. Goza de todas as delícias mas não bulas nem toques no fruto dessa árvore que aqui está no meio. Na hora em que tocares saberás a ciência do bem e do mal
7
(desaparece a figura de Deus)
Adão (andando de um lado para o outro)
Que solidão é esta em que existo? Apesar de estar senhor do paraíso terreal, vivo só. Se vós me conseguísseis companhia, meu Deus !
(baixa a figura de Deus)
Deus
Ó Adão o que te faz falta?
Adão
Companhia, Senhor
Deus
Pois não é bem que o homem viva só. Faça-se a mulher à sua imagem e semelhança. Levanta-te Adão! Levanta-te Eva.
(erguem-se as duas figuras)
Deus
Aqui ficam ambos de guarda a este paraíso terreal. Mas cuidado! É proibido comerem o fruto desta árvore que se chama ciência.
Sois carne da mesma carne e osso do mesmo osso. Tanto se unem um ao outro que hão-de parecer duas carnes e um só osso.
(sai Deus. Logo se ouve um barulho dum réptil. É uma serpente que espanto enroscando-se às árvores e, chegando-se a Eva, interpela-a)
Serpente
O que fazes tu Eva, porque não comes do fruto desta árvore, que está no paraíso?
Eva
Disse-nos Deus que não bulíssemos nem tocássemos no fruto desta árvore. Na hora em que o comermos saberíamos a ciência do bem e do mal.
Serpente
Enganou-te. Nas horas em que o comeres abrirás os olhos.
Eva
Guardo o meu desejo
Serpente
Chega esta maçã e come-a.
Eva (saboreando a maçã)
Oh que fruto tão delicioso. Comerei e levarei ao meu marido.
8
Toma Adão que é da árvore que está no paraíso terreal.
Adão
O que nós comemos? Ai mulher que me enganaste. Fizeste quebrar o preceito que Deus nos tinha posto. Ai que miséria! Que miséria, meu Deus.
(baixa Deus à terra)
Deus
Ó Adão! Onde estás tu Adão
Adão
Senhor, ouvi a sua voz e escondi-me porque estava nu.
Deus
Anda cá Adão. Então porque fizeste isso?
Eva
Foi a serpente que me enganou
Deus
Venha cá a serpente. (chega a serpente)
Então porque fizeste isto?
Serpente
Invejada a minha sorte
Pelo estado em que me vê
Não queria que ninguém lograsse
Carinhos que eu já logrei.
Deus
Pois maldita serás
De rastos andarás
Terra comerás
E dela não te fartarás
E tu Adão! Que deste atenção à voz da tua mulher, a terra para ti vai criar espinhos e abrolhos. Ganharás o pão com o suor do teu rosto.
E tu Eva
Com dores parirás os teus filhos e ficarás sujeita à obediência do teu marido.
E agora, à vossa vista, vão passar todas as feras, animais e aves a que porão a cada qual seu nome.
Seguidamente serão expulsos do paraíso terreal com uma explosão de fogo.
(explosão de lumes)
9
No final vem um anjo com uma luz e diz:
Criou Deus uma árvore
No paraíso terreal
Eva imaterial
Não querendo ficar só
De Adão não teve dó
Assim nos veio enganar
Foi decreto do Altíssimo
Sair deste lugar
Com uma explosão de fogo.
(cai a chama, saem Adão e Eva)
Passagem dos Animais
Entra um borrego acompanhado pelo Mestre Salas que diz:
- Toca, toca, lá para fora
Olha coitado, parece mesmo o avô do Caisarão. Morreu cheio de ronha, tal e qual anda o neto
Que animal foi este que aqui passou?
Responde um espectador
Foi um borrego
Mestre Salas
Cheira-lhe o rabo meu patego
(sai o borrego, entre um cão)
Mestre Salas
Fora, fora, lá para fora!
Cautela que ele tem mau dente
Que animal foi este que aqui passou?
Responde um espectador
Foi um cão
Mestre Salas
Assim és tu e teu irmão
(sai o cão e entra um porco)
10
Mestra Salas
Fora, fora, lá para fora!
É rapaz parece mesmo Manuel do Serrado. Olhem o focinho, se não trouxesse arganel foçava a torto e a direito.
Que animal foi este que aqui passou!
Um espectador
Foi um porco
Mestre Salas
Cheira-lhe no rabo meu torto
(sai o porco e logo entra um boi furioso a marrar. O Mestre Salas desafia-o e foge exclamando alto)
Mestre Salas
Ó Padre Chanca
Padre Chanca
O que é?
Mestre Salas
Venha abaixo que está aqui o Chico do Janico que se quer confessar.
(vem o Padre e o boi corre para ele. O Mestre Salas ri e comenta)
Mestre Salas
O Senhor Padre Chanca vá na cabeça que eu vou-lhe ao rabo.
(depois duma pega pergunta para a assistência)
Que animal foi este que aqui passou ?
Um espectador
Foi um boi
Cheira-lhe o rabo que ele já se foi
(sai o boi. Mestre Salas fica a um canto esbaforido enquanto entra um corvo a uivar por cima da árvore do paraíso e grasnando – quá, quá .. quá, quá)
Mestra Salas
Eh que passaranho mais negro! Assim pela cor parece mesmo o Joaquim Capaleve.
Que animal foi este que aqui passou?
Um espectador
Foi um corvo
11
Mestre Salas
Cheira-lhe no rabo e dá um sorvo.
(sai o corvo e vem a pomba a voar também por cima da árvore do paraíso)
Mestra Salas
Ai que passarinho tão bonito. Ser, ser… ser, ser. Ai que passarinho tão bonito! Pousa, pousa, pousa aqui no meu pousinho.
(a pomba pousa na árvore do paraíso)
Ó senhor Diogo do Carapeto. Empresta-me o seu boné para o apanhar que está no choco? (vai agachado e tenta subir à arvore. Quando tenta cai e bate com os dentes no chão e diz:
Ai meus belos dentes! Assim sucede ais rapazes novos. Por causa dos passarinhos é que eles partem os focinhos.
Então que ave foi esta que aqui passou?
Um espectador
Foi uma pomba
Mestre Salas
Olha, mete-me rabo a tua tromba.
(música de guitarradas)
Neste mesmo cenário
Abel e Caim. Dois irmãos com pensamentos desiguais, até opostos:
Abel - fiel a Deus
Caim – mau e invejosos, contrário a Deus.
Vem Abel com um cordeiro às costas, acompanhado de toque sentimental. Ajoelhando-se exclama:
Abel
Senhor! Eu sou um reles pastor, beato, recto e santuário. Ofereço um cordeiro de este meu gado mais nédio. Aceita Senhor! Que tudo o que tenho é vosso. Como sou pobre e recto dou tudo o que posso.
(uma chama ilumina a cena e o borrego desaparece. Fica só Abel, ajoelhado. Logo Caim, zombeteiro e que grita)
Caim
Criado de seu irmão Abel
Então o que andas por aqui fazendo e sargentiando?
Abel
Ora adeus, irmão Caim. Vim ofertar um borrego a Deus Nosso Senhor.
12
Caim
Furtar um borrego a Deus Nosso Senhor
Abel
Não, não. Oferecer em mil sacrifícios pelo bem que nos tem feito.
Caim
Olha o que você é de esmoler. Talvez o melhor borrego que tinha no seu rebanho lhe viesse encaixar com ele nas unhas. Então você não sabe que Deus é muito rico? Deus é que dá tudo, não precisa das suas migalhas nem migalhices de ninguém
Pois você tem de tratar de outra vida; comer à moda, trajar ao uso, chapéu de esguelha, fivela à canha, relógio de pendura com seus pesos de fora e, arre cá, e arre lá, veja-se esta boa sentença. Comigo não e aguardo for (sai Abel)
Caim
(de joelhos) Senhor! Eu sou homem que rompe a terra. Quero para mim o produto que ela der. Tenho em casa sete ou oito espigas que bem mal gradas estão… Se tem quem vá por elas mande, que eu não tenho quem as traga e aguardo fora.
Abel
(entra e diz) Senhor! Perdoai ao meu irmão Caim que é tão mau e turbulento. Perdoai-lhe Senhor
Caim
(chega de novo) Olá irmão Abel
Abel
Ora adeus irmão Caim
Caim
Então tu não sabes que está chegada a hora e o último momento da tua vida?
Abel
Então porquê irmão Caim?
Caim
Porque você é um trapaceiro. Anda com inzonas a Deus Nosso Senhor contra mim. Julga que eu não vi? Para o seu sacrifício houve fogo; para mim nem foguetes. Além disso, você sendo um reles pastor, quanto menos ovelhas tem mais borregos cria. Eu, um grande lavrador, quanto mais semeio menos recolho, quanto mais ovelhas tenho menos borregos cria. Tudo isto, é das aldrabices e trapaceiras que diz a Nosso Senhor contra mim.
E sobre a sua morte alvitram muitos outros; uns que o leve para o campo e lhe dê com um pau; outros com uma pedra, outros que o deite a um poço. Mas morto há-de ser, não haja dúvidas, com esta queixada que aqui trago debaixo da jaqueta. Quer vê-la ?
Abel
Perdoai irmão Caim. Olhai que sou do vosso sangue.
13
Caim
É o mesmo que me não fosse nada. Hei-de matá-lo, já formei essa tenção.
Abel
Perdoai irmão Caim. Tudo isso são inzonices que o Demónio tem metido no seu sentido.
Caim
Você é que não sabe onde está metido, seu caga-larachas. Prepare-se para a cheirar
Abel
Perdoai irmão. Farei o sacrifício por si que for mais louvável e aceite.
Caim
O que lhe importa que eu faça sacrifícios ou não
Zus! Catrapuz! (mata Abel)
Abel
Seja pelo amor de Deus.
Caim
Seja por essa caldeirada de nabos. Aqui fica morto sem mexer com pé ou mão. Todo se esganiou. É que fede e cheira mal.
(a luz sofreu alteração. Vem um grupo de anjos dançando, acompanhados à guitarra que levam o corpo de Abel para p céu. O coro entoa estes versos
Já Caim matou Abel
Sem motivo nem razão
Já os anjos o levam
Para o céu em procissão
(vem a fiandeira, mão de Caim e Abel)
Fiandeira
Ai meu rico filho! Caim mataste teu irmão Abel. Ai filho, filho. Abranda-me as minhas lágrimas.
Caim
Como quer que eu as abrande, mãe, se o meu coração é de ferro e as entranhas são de bronze?
Fiandeira
Ai filho, filho! Tu…. Tu…. Tu…. Chi… Chi… Chi…
Caim
Ó filho duma puta. Este diabo é a minha mãe. Tudo isto por eu matar o meu irmão Abel.
14
Mas eu matei-o está morto. Fiz eu muito bem. Um homem, em fazendo um feito está feiro; em dizendo está dito. O falado falou-se e o que ardeu queimou-se.
Se me mandarem para o inferno eu fujo. Sou muito leve. Salto um pulo para aqui, outro para ali e outro para além. Ó pernas fidalgas! Por pés ninguém me apanha.
Se não monto no António Acalca que é capaz de avançar pelos infernos adentro.
(ouve-se uma voz soturna do além)
Voz
Ó Caim!
Caim
Se caiu levante-se
Voz
Onde está teu irmão Abel?
Caim
Sei lá do meu irmão Abel. Não sou guarda dele nem o trago às costas.
Voz
O sangre do teu irmão reclama vingança sobre ti.
Voz
Vou pôr-te o meu sinal.
Caim
Já agora não me arrependo
(vem uma nuvem de fumo e Caim fica condenado com a cara toda preta. Como se trata de bonecos, a personagem tem duas caras cobertas por um capuz. Basta só rodar e a ilusão é completa)
Caim (lamentando-se)
Bá…bá…bá…bá…bá….bá… Ai como eu fiquei. Vá lá a gente mangar com as coisas de Deus. Deram-me a maldição pelos narizes e fiquei mesmo da cor do Gaimão. É o mesmo. Já não me arrependo. Há para aí mais diabos (na plateia) que queiram jogar às cartas comigo?
É lá que iremos que é você (nomeia um da plateia).
(a cena aqui mudou-se. O recinto é o inferno, com grades nas janelas cheios de picos e línguas de fogo por todos os lados. Já com Caim estão mais bonecos em formas de bichos, dando-se-lhe o nome do baile dos cágados. Tornam os diálogos invocando e chamando para o inferno as pessoas mais conhecidas da assistência)
Caim
Quem diremos que é você?
15
Bicho
Eu sou o kaiserão
Caim
Venham mais diabos, que ainda lá não estão todos
Quem duremos que é você?
Bichos
Eu sou o cabo Xele (um da plateia)
(agarram-se todos s bailar com os chocalhos a tocar. Deitam-se bombas de Carnaval. Pulando em confusão e alvoroço saem e termina o número)
Ter em atenção que os nomes (axexins) são sempre de pessoas que estão na assistência e que previamente alguém terá o cuidado de saber e se a pessoa em causa não se aborrece de ser nomeado
Passos do Deus Menino
Cenário com três portais.
Dum sai S. José puxando uma burra onde vem a Virgem montada, um anjo à frente segue-os, cantando:
Lá vai José e Maria
Caminhando para as montanhas
Ela vai muito pejada
Leva Jesus nas entranhas.
Chegada a Belém, S. José bate a uma porta e diz:
Ó senhor desta pousada
Dai-me cómodo e abrigo
Trago esta mulher pejada
O tempo corre perigo.
(responde o estalajadeiro com voz alta)
Eu não posso acomodar
Mulher com dores
Muito nos vem incomodar …
S. José
Vamos querida esposa
Sobre as ruas de Belém
Tenho aí alguns amigos
E alguns parentes também
(caminham sempre ao som de música pausada da guitarra que só pára quando vem a fala das personagens)
16
Virgem
Vamos querido esposo
(S. José bate à segunda porta)
Truz, truz, truz
Voz de dentro
Quem é que vem ?
S. José
Seu primo José
Abrigo lhe convém
Voz
Eu não conheço meu primo
Nem de esse prazer venho
Não quero desassossego
Aos hóspedes que cá tenho
S. José
Vamos querida esposa
Virgem
Vamos querido esposo,
Caminho da boa aventurança
Mais caminham e procuram abrigo.
S. José
Ó senhor desta pousada
Dai-me cómodo e bom recato
Trago a mulher pejada
E o tempo é chegado
Estalajadeiro
Saiam por esse portal fora!
Tenho tudo em bom sossego
Não se abrem portas a esta hora
Não quero aqui desassossego.
S. José
Vamos, querida esposa
Virgem
Vamos querido esposo
(seguem sempre ao som da música da guitarra. Ao fim encontram uma choça onde se abrigavam uma vaca e uma mula. Nasce o Menino Jesus sobre umas palhinhas, junto dos animais)
Vem um anjo cantando
17
Alvíssaras, povo auditório
Cantemos com alegria
Já nasceu o Deus Menino
Filho da Virgem Maria
(continua a música pausada. Agora vem outro anjo que diz)
Gaspar, Belchior e Baltasar
Eu aqui por Deus mandado
Para vos acompanhar
(o anjo, à frente dos três Reis, seguindo uma estrela, fala,)
Dá-me licença Senhor
Que adoro vossa perfeição
Aonde os anjos estão
Gozando com sumo amor
O seu lindo resplendor
Anuncia a voz do céu
Rasgaste-se humano véu
Aonde tudo se encerra
Paz aos homens na Terra
Glória in excelcis Deo.
(entra o primeiro Rei e diz, depois de beijar o Deus Menino)
Senhor eu sou Rei aspar e Mónia
Trago a meu mandar
A maior parte da Canimónia
(oferta ao Deus Menino)
O meu oferecimento é oiro
Oiro, meu divino Rei
No meu monumental tesouro
Foi o melhor que encontrei.
(vem o segundo Rei)
Senhor!:
Eu sou Rei Príncipe da Pérsia
Trago a meu mandar
A maior parte da Grécia
(oferta ao Deus Menino)
O meu oferecimento é incenso
Ou clemente
Para oferecer ao Menino
18
Filho omnipotente
(terceiro Rei, sendo preto)
Senhor!
Eu sou Rei da Manicheta
Na maior parte da Amazona
Nasceu um menino sem teta
(oferta ao Deus Menino)
O meu oferecimento é sal e mirra
Não tenho mais que lhe ofertar.
Sei que haveis de morrer
E haveis de ressuscitar.
Os três Reis beijam o Menino e seguem, mas não pelo mesmo caminho, por temerem Herodes.
Vêm os pastores ao som de chocalhos, que são dos rebanhos
São três – Silvestre. Zagalo e Perna Gorda. Chegam e pedem licença.
Um anjo do alto do presépio e canta:
Entrai pastorinhos entrai
Por esse portal adentro
Vinde ver o Deus Menino
No seu Santo Nascimento.
(os pastores admiram-se de o Menino estar nas palhinhas. Beijam-no e fazem ofertas)
Dizem os três:
O que damos nós ao nosso Deus Menino
Silvestre
Eu dou-lhe uma pelinha
Muito bem sovadinha
Para o Senhor fazer a caminha
Zagalo
Eu dou-lhe uma quartinha de leite
Para que lhe aproveite
Perna Gorda
Eu dou-lhe uma colherzinha
Muito bem bordadinha
Para a Mãe lhe dar a papinha!
(Beijam e chochorreiam o Menino e depois despedem-se)
Adeus, adeus nosso belo Menino
19
Diz Silvestre
Então temos que cantar umas cantigoilas à visto do belo Prodígio
(começa dançando e cantando o seguinte verso)
Eu tenho o meu pão no forno
Minha mulher a morrer
Nem que minha mulher morra
Meu pão não se há-de perder.
(diz o Zagalo a Perna Gorda e a Silvestre)
Vamos embora, eu a esta hora andam os lobos com as ovelhas e as ovelhas com os lobos.
Perna Gorda
Vamos dar mais um beijo ao Menino, que tem uma cara tão pequenina e tão linda!
Silvestre (acompanhado pelos outros)
Adeus, adeus, belo Prodígio!
(saem dançando com as samarras)
Passo do barbeiro
(aparece um boneco com uma bata branca e dizendo)
Há para aí alguém que queira fazer a barba?
(responde um qualquer da assistência)
Quero eu.
Barbeiro
Quem é o senhor
(entrou outro boneco que representa o freguês que falou e responde:)
Eu sou o João Picamilho
Barbeiro
Sente-se faça favor. (o boneco senta-se). Como é que quer o serviço? O bigode vai fora ou fica?
Freguês
Fica
20
Barbeiro
Vem como uma gadanha e chamando por uma gato
Bichiu … bichiu … bichano …
Freguês
O que é que você está a chamar?
Barbeiro
São os gatos que estão avezados aos bocados de carne que sobram da cara dos fregueses.
Freguês
Eh! Lá! Veja como é isso. Então o que traz aí na mão?
Barbeiro
É a navalha
Freguês
Parece mas é uma gadanha
Barbeiro
Prepare-se que vamos começar
Freguês
Ai, ai mestre. Arranca-me tudo.
Barbeiro
Está áspera? Eu arranjo já. (começa a afiar a gadanha no chão e vai outra vez fazer a barba)
Freguês
Agora escapa. Está um pouco melhor.
(acabada a barba, o freguês com a toalha ainda posta, ouve uma guitarra e começa a bailar o fandango. Com os trejeitos entorna a bacia e diz.)
Oh que bela tocata tem cá o mestre. Eu não posso estar quieto.
Barbeiro
Sente-se. Você está maluco.
(tira-lhe a toalha, limpa-lhe a cara e o freguês sempre bailando. Às tantas, o barbeiro cansado de esperar pergunta)
Barbeiro
Então você não procura contas?
Freguês – disfarçando –
Ai que rica tocata você cá tem!
21
Barbeiro
Não é isso que eu quero. Você para ou não paga?
Freguês
Ai que belo piano!
Barbeiro (gritando para dentro)
Ó primo Salas vem cá abaixo.
(vem Salas e diz para o barbeiro que nessa altura é dado o nome do barbeiro da terra)
Mestre Salas
O que é que quer, ó mestre Badete?
É o… o…. o…. si… si… si… nhor… Pi… Pi…. Ca…ca…mi…mi…lho que não me quer… pa… pa…pa…gar.
Mestre Salas
Você paga ou não paga ao barbeiro?
Freguês (sempre bailando)
Ouça esta, Mestre Salas! Esta aprendi eu com o João Pulante
Mestre Salas
Eu não me interessa o fandango. Paga ou não paga?
Zuz. Catrapuz. (caiu o Picamilho)
O Mestre Salas pega na cadeirinha e dá-lhe com ela.
Toma, toma.
(até que o mata. Chega um sargento da guarda, que anda fazendo ronda e que, ao ouvir gritos, vem ver o que se passa.)
Sargento
Ó Mestre Salas! Então o que aconteceu?
Ouvi gritar, alguém em aflição?
Mestre Salas
Aqui não há nada de novo.
Sargento
Então deixe-me passar
Mestre Salas (barrando a porta)
Aqui não passa
Sargento
Então porquê?
22
Mestre Salas
Já lhe disse que não passa.
Sargento
Eu sou autoridade e tenho que passar.
Mestre Salas
Mas não passa que eu não sou nenhuma passadeira.
Sargento
Eh! Eh! O que está aí nas suas costas?
Vejo um homem caído
Mestre Salas
Não sei quem é nem o tinha visto.
Sargento
Você tem que dizer quem matou este homem ou fica responsabilizado pela morte deste senhor Picamilho.
Mestre Salas
Eu? É boa. Que culpa tive eu do homem morrer?
Sargento
Diga diante de mim para o quartel.
Mestre Salas
Eu não vou porque eu não matei o homem.
Sargento
Vai, vai. E vai mesmo e é já.
Mestre Salas
Não me empurre. Olhe que eu não o vejo diante.
Sargento
Mas eu vejo bem a você! Fora. Fora.
Mestre Salas (virando-se para o Sargento)
Fora!
Zaz, zaz, catrapaz… (agarram-se. O Salas mata o Sargento)
Sargento (antes de cair grita:)
Às armas! Às armas!
(chega o Capitão. Vem montado num cavalo, acompanhado com tropas com tambor e cornetas. Chega e diz)
Quem matou estes dois homens?
23
Mestre Salas
Eu não sei senhor. Eu vinha aqui passando e já estavam caídos.
Capitão
Foi você que ao matou. Vai preso. Bateria, firme! Ordinário, marche!
(o Salas foge)
Fogo! Fogo (o Salas cai. O Capitão manda seguir)
Baeria, em frente. Ordinário, marche!
(o Salas levanta-se. Ficou ferido e fala)
Mestre Salas
Ai! Ai! Ó meu capitão. Só dois minutos para me despedir dos amigos e da minha prima.
Capitão
Então faça isso depressa.
Mestre Salas
Adeus prima; tão nova e ficas sem amparo! Adeus meus amigos, até ao dia do Juízo.
(para o pelotão de fuzilamento)
Ó rapazes! Façam as pontarias que eu amanhã pago o vinho na taberna do Cheles.
Capitão (para o Salas)
Arrume-se àquela coluna.
Tropa apontar! Apontar um, dois, apontar três. Fogo.
(o Salas caiu morto fingindo e o Capitão manda andar)
Bateria! Ordinário marcha!
(voltadas as costas da tropa, o Salas vai agachado direito ao Capitão e dá-lhe uma paulada. Deitando-se bruços logo a seguir. E interrompe-se a marcha do pelotão)
Capitão
Quem falou debaixo de forma?
O Salas está morto, o Sargento está morto, o Picamilho até já cheira mal!...
Vamos em frente. Ordinário, marche!
(o Salas voltou outra vez à vida. Então com mais violência, deita-se ao Capitão e aos guardas e deita-os fora à paulada)
Mestre Salas
Toma, toma, toma…
Eh prima, não chores que eu não morri
24
Meus amigos, vamos para a pândega em casa de Cheles que hoje há lá passarinhos recheados com molho de malagueta.
Sermão do Padre Chanca
Sermão improvisado por João Cartaxo, bonecreiro que manejava o boneco que desempenhava o papel de Padre Chanca. Chega ao púlpito e diz:
Senhora Dona gata morena! Estava sentada à sua janela, colocando a sua meia de seda e o seu sapatinho de virau caiu do telhado abaixo, partiu sete costelitas e metade do costau. Esta oração seja por sua intenção, para me dar um bocadinho de toucinho pata comer com pão. Chim! Golim! Tim!.
Senhores e senhoras! Se alguém não tem coração em boa disposição para ouvir as minhas palavras é favor sair. É que eu, a primeira vez que preguei este sermão foi em Borba.. Rebentaram quatro calçadas, rebentou a torre da igreja matriz caiu o badalo do sino grande na cabeça dum menino e nem um cabelo lhe arrancou, por milagre de Deus.
Caros ouvintes. Desde que preguei em Borba ficaram sempre as portas viradas para a rua, as paredes para baixo e os telhados para cima. As águas sempre correndo para baixo e não para cima. Eu disse lá palavras que a fonte das bicas parou de correr lá duas horas.
E posto isto, vou-lhes dizer qual o milagre de S. Janaquito; foi curar um unheiro da ponta dum chavelho duma vaca. S. Martinho viu vir uma vara água abaixo. Apanha-a e espetou-a no quintal. Ao fim de tempos nascerem uns rebentos. Deitou-lhe água. Daí a pouco nasceram umas folhas a que deram o nome de parras. Veio o mês de Junho deitou uns bagos verdes. Em fins de Setembro fizeram-se pretos. Provou, gostou muito. Para guardar memória meteu-os numa garrafa e arrolhou muito bem. Esqueceu-se. Ai fim de sessenta dias lembrou-se e foi provar outra vez. Ai que beleza! Tornou a provar e gostou mais ainda. Começa a sentir calor e vontade de cantar. Veio a saber que era a força daquele liquido tão puro que lhe dera aquela alegria com o nome de santo vinho tinto, esse que as mulheres vão bebendo.
São as maiores paixões que eu sinto.
E o santo vinho branco, esse que as mulheres bebem e essas paixões que eu sinto tanto. E para descansar, que já principiei o meu sermão.
Ora caros ouvintes, Vou-lhes dizer os sítios onde tenho pregado.
Primeiro foi na Orada. Não ganhei nada. Segundo na Alcavariço. Ganhei uma linguiça. Treceiro no Santo Antão. Ganhei um tostão. A seguir em santo Aleixo. Deixaram-se o cu no eixo. A seguir em S. Bento. Meteram-me o para dentro. A seguir em Santo Amaro. Fizeram-me puxar um carro.
E, para continuar, vou contar-lhes quais as três coisas mais admiráveis que presenciei na minha existência.
Quais serão, meus senhores?
Primeiro: é as aves andarem no ar e não caírem.
Segundo: os peixes andarem no mar e não morrerm afogados.
Terceiro: é os trens terem quatro rodas e as de diante serem pequenas e as de trás serem grandes e não apanharem as pequenas.
25
Chim! Golim! Tim!
Entra Mestre Salas no palco e diz:
Senhor Prior! Era capaz de vir cá abaixo confessar uma pobre alienada. Mas tem de ter paciência porque ela não sabe o que diz.
Padre Chanca (entra)
Sim diz-lhe que venha. Já sei. É alguma carraça de sacristia. Eu já venho. (lá de dentro) Ó Sacristão!
Traz-me a minha cadeira.
O Sacristão traz a cadeira.
O Padre senta-se e diz
Ora venha então essa beata
Beata (lá dentro)
Estou a pentear-me.
Ai, mãe que me arrepelas.
Ó mãe, faz-me o arrepiado.
Beata (lá dentro)
De pasta é quanto basta
Beata (lá dentro)
Adeus mãe, passa bem mãe, até ao dia do Juízo!
Padre Chanca
Olhem, julga que vem morrer.
Beata (vem cantando)
Ontem toda a tarde
Hoje todo o dia
Choram os meus olhos
Porque os teus não via.
(sempre dançando)
Padre Chanca
Eh!... eh!... eh!... lá! Aqui não se canta nem dança.
Aqui é uma casa séria. Ajoelhe-se
Beata
No chão?
Padre Chanca
Então há-de ser no ar ?
Beata
Aqui não há água benta?
26
Padre Chanca
Ó Sacristão! Traz água benta para esta maldechana de calar. Ajoelhe-se.
Beata
Ai meus joelhos
Padre Chanca
Olhem lá! Ainda não chegou ao chão e já se está a queixar.
Ora, bem; então tu sabes benzer-te?
Beata sei três benças
Padre Chanca
Três benças! Então quais são as benças que tu sabes?
Beata
Sei a encarnada, a verde e a azul.
Padre Chanca
Então as confissões têm cor, espravoeirada?
Beata
Pois têm.
Padre Chanca
Então diz lá a azul.
Beata
Eu namorei um rapaz que usava uma gravata azul. Gostava tanto dele! Namorei outro que tinha uma calça azul. Ainda gostava mais dele.
Padre Chanca
Se visse um burro com um cabresto azul gostavas de o namorar. Então tu sabes os mandamentos?
Beata
Ah! Sei, sei padre!
Padre Chanca
Então quantos são?
Beata
São dez.
Padre Chanca
Ora bem; lá deu uma certa
Então diz lá
27
Beata
O primeiro? Andas aos coices pelo mundo inteiro
Padre Chanca
Valha-me Deus, onde estou metido!
Então o segundo?
Beata
É andar aos coices por esse mundo
Padre Chanca
Parecia-te pouco uma, arrumaste-lhe duas
Então o terceiro?
Beata
Levanta-te da cama e vai para o espojeiro.
Padre Chanca
Já sei que tenho que te aturar até ao fim.
Então o quarto?
Beata
É jejuar depois de farto
Padre Chanca
Ai que estupor não diz senão asneiras!
Então o quinto?
Beata
Pus-te a albarda e apertei-te o cinto.
Padre Chanca
Em que trabalhos me meti!
Então o sexto?
Beata
Dizia-lhe muito bem um cabresto.
Padre Chanca
Então o sétimo
Beata
Das orelhas saiu-me esperto
Padre Chanca
Olha, esperta me saíste tu. E parecias parva!
Então o oitavo?
28
Beata
Pareces mesmo um pato bravo.
Padre Chanca
Valha-me Deus
Então o nono?
Beata
Olha para trás não venha o dono.
Padre Chanca
Então eu tenho alguma coisa roubada?
E o décimo?
Beata
Para cavalaria tens préstimo.
Padre Chanca
Tu nem para isso deves prestar.
Então esses dez mandamentos em quantos se encerram?
Beata
Em dois
Padre Chanca
Sim, sim. Então quais são?
Beata
Se deres os coices antes não os dás depois.
Padre Chanca
Tu deste-os antes e depois.
Então como é que te chamas?
Beata
Eu sou Maria Joana Antia Josefa Gabriela Soares.
Padre Chanca
Eh! Que nome tão grande tu tens.
Beata
Ora, são criaturas que têm morrido e eu vou juntando os nomes.
Padre Chanca
Olhe, diz a verdade
Tu já roubaste alguma coisa a alguém?
Beata
Então o Senhor Prior já roubou?
29
Padre Chanca
Mas quem é que se confessa, és tu ou sou eu?
Beata
Eu já roubei
Padre Chanca
Então o que roubaste?
Beata
Roubei uma cordinha
Padre Chanca
Um corda! Tens que a entregar ao seu dono.
Beata
Mas a corda andava
Padre Chanca
Andava? As cordas não andam.
Beata
Tinha atada uma patinha.
Padre Chanca
Uma patinha! Aqui há mistério! Diz lá tudo
Beata
Era um relicha
Padre Chanca
Um relicha! Que é um relicha
Beata
É um bacorinho
Padre Chanca
Um bacorinho!
Beata
Sim senhor. Um bácoro pequenino.
Padre Chanca
Tens que o trazer para se restituir ao dono.
Beata
Não vale a pena. É quase nada.
30
Padre Chanca
Mas tem que ter algum peso.
Beata
Não pesa nada.
Padre Chanca
Tens que dizer o que o porco pode pesar.
Beata
Pesou 3 arrobas e 3 quilos.
Padre Chanca
E era pequenino! Se fosse grande quanto pesava?
Deixa lá, para comer não é pecado roubar.
Tens mais algum pecado que te acuse a consciência?
Beata (com a mão no peito)
Pesa-me, pesa-me…
Padre Chanca
Olha, se te pesa põe aí no chão.
Beata
Ai senhor Prior. Tens uns olhos tão bonitos!
Padre Chanca
Então vens para te confessar ou olhares para os meus olhos?
Beata (encostando-se ao Padre e firmando-se nas pernas)
O Senhor Prior tem aqui uma coisa tão dura!
Padre Chanca
Cala-te rapariga. Não vês que é o pé da cadeira.
Ora, ora! Valha-me Deus
Eu sou homem como os mais e vejo-me comprometido.
Pronto rapariga. Vai-te embora. Estás confessada
Beata
Adeus Padre
Padre Chanca
Vai com Deus e que a estrela te guie.

Um comentário:

José Barbieri disse...

gostei muito do texto que colocou. Estou a fazer uma montagem vídeo a partir de uma actuação destes bonecos de São Bento do Cortiço.
autoriza-me a utilizar partes do seu texto para melhor contextualizar a gravação?
A mesma será publicada em www.memoriamedia.net
grato pela atenção
José Silva
memoriaimaterial@gmail.com